A Felicidade de Vera

Ericeira de São Luís
10 min readJun 13, 2023

ELE vai me ajudar…vai saber o que fazer!

Chove. Vera fecha a porta do carro, e retira o terninho, não tanto por estar encharcado, mas para respirar melhor. Pressiona as mãos contra o rosto e chora copiosamente. Isso não é Felicidade!

Dá a partida e liga o som, mas antes que se conclua a primeira estrofe da música, ela se perde em pensamentos. Saí sem pedir a opinião DELE, mas vai entender, ele nunca gostou de Jefferson, muito menos das crianças. Já sabia que ia proibi-la, criticá-la, por isso precisava arriscar sem ele. Tentara sair cedinho, sorrateiramente. Lembrou do grito grosseiro que deu, quando fechou a porta atrás de si: “Vai pra onde, vagabunda? Volta aqui!”. Era assim, nos últimos tempos. Mas agora ELE vai me ajudar, tem que me ajudar, eu preciso.

Ah, como estava sendo boa a manhã, mesmo Jefferson fora super educado, explicando o dia a dia das crianças, e depois convidando-a ficar para o almoço. Que clima gostoso, aqueles três rostinhos em torno da mesa, contando das mil experiências na escola, implicando uns com os outros. Mas na hora percebera algo estranho, que só foi entender mesmo mais tarde. Eles não a chamavam de mãe, trocavam hesitantes, desconfortáveis, o vocativo por “Ei”. “Ei, vem aqui, deixa eu te mostrar meu quarto”. Ou então recorriam ao inquestionável “Senhora”. O tom dirigido a ela era muito formal. Na hora do café da tarde, enquanto desfrutava da alegria de ter Vilma no colo depois de tanto tempo, aquele cheirinho de shampoo no cabelo dela, veio a frase que partiu seu coração: “Ei, preciso sair agora, mamãe disse pra eu pegar minhas roupas no varal antes dela chegar, e vai chover”. Isabel nem mesmo cruzara a mente dela até então, a sua substituta, vadia! Um estremecimento percorreu o corpo quando a menina lhe escapuliu dos braços para atender a outra. Tentou desconversar com Jefferson sobre o trabalho dele, mas ele notou o rosto transtornado, ela não podia permanecer ali. Despediu-se de Vilma de longe, deu adeus para os filhos na escada para o segundo andar, sem subi-la, e eles não fizeram questão de descê-la, já ia saindo sem a bolsa, quando o ex-marido chamou seu nome.

Vou parar na padaria e comprar quatro pães e o azeite, oferecer tudo de uma vez, ELE há de me perdoar por ter saído daquele jeito. Oh, mas ultimamente se tornou tão amargo, tenho medo do que vai fazer, dessa vez não será facilmente apaziguado, eu não preciso disso agora, mas ELE é o único que pode…Vera aproveitou o semáforo para enxugar os olhos. Segurou com força o volante, tentou concentrar-se na própria respiração. Calma! Hoje é domingo, não é dia de pães e azeite.

Na sexta-feira da semana anterior, do nada, depois do almoço, ELE reclamara da disposição dos objetos do apartamento. “Vera vagabunda, isto está errado, não quero assim.” Não adiantava argumentar que sempre estivera daquele jeito, reorganizou a sala, a cozinha, o banheiro e o quarto duas vezes, mudando o sofá, a televisão, a mesa de centro, a estante, os livros e até as decorações na estante, a geladeira, o armário, a cama, a poltrona. Era tudo muito pesado e cansativo para ela sozinha. “Assim não, fracassada”, dizia, quando ela terminava e perguntava se estava bom, como se tivesse oferecido algum plano em relação ao qual ela houvesse falhado. “Errado, errado, errado.” Ordenou então que ela colocasse as cadeiras da cozinha na sala, ao redor da mesa de centro; a estante, no quarto, do lado esquerdo da cama, na juntura entre as duas paredes, e não encostada numa delas; que substituísse o sabonete líquido por uma barra e a dividisse ao meio; que jogasse fora os objetos feitos apenas de plástico — todos — e o sofá. Já era tarde da noite, e ela só queria deitar, assistir televisão, aproveitar um pouquinho o primeiro dia do fim de semana estendido, trabalhara tanto até quinta. Cumpriu todas as ordens, mas o sofá não, era de família, pertencera à avó. “Joga fora, gorda miserável! Esse sofá está te deixando gorda e interferindo no ambiente.” Vera aprendera a lidar com os outros xingamentos que se tornaram comuns fazia um tempo, mas “gorda” a magoou profundamente, ela se esforçava na academia para manter o peso, e seguia à risca as dietas malucas prescritas por ELE. “Verona, verona, não coma nada que te der prazer, preciso de você gostosa, sempre gostosa”. O sofá vai ficar ali! Foi para o quarto e trancou a porta.

Então teve início o ciclo de sempre, primeiro, a pura perturbação. ELE gritava, gritava, de muitos jeitos diferentes, gritos agudos, gritos graves, como se com diferentes vozes, entremeados por um conjunto estéril e repetitivo de xingamentos. Antes, ela cedia logo, com medo de que os vizinhos reclamassem, mas ninguém o fez, e ela aprendeu resistir a essa parte. Depois disso, era a vez das pancadas no chão, nas paredes, nos armários, e então na porta do quarto, parecia que ia cair. Havia outro som, um barulho insuportável, arreliante, de raspagem na parede. Ela ignorava tudo isso, ajudada pelo orgulho, queria machucá-lo, mostrar-se plena, indiferente aos achaques DELE, a televisão num bom volume ajudava. Mas, por fim, seguia-se o pior: aos gritos, prolongando-se noite adentro, juntavam-se, em contraste, as ameaças monotônicas, periódicas, incansáveis. “Eu caio.” “Eu caio.” Ela nunca passara daqui, assim ELE a tinha obrigado abandonar Lindinha, a cadela Shitzu, presente de casamento do irmão, a única coisa com que ficara do matrimônio fracassado: “Põe fora, não dá para ninguém. Tira isso daqui!” Naquele dia, decidira, talvez por antecipação, resistir a essa fase da chantagem, estava exausta, e toda a frustração de quem ELE deveria ser e não mais era transbordou naquele xingamento de gorda. Berrou, “Cai, desgraçado, cai, e me deixa!” Pôs uma música bem alta no fone de ouvido. Quantas vezes já tinha se imaginado virando aquilo tudo de uma vez, esmagando e pulverizando ele depois; chegara a planejar até o que faria com o espaço recuperado do outro quarto. Mas esse pensamento a perturbava, era blasfemo, vertiginoso. Naquela hora, com tanta raiva fantasiou a queda DELE; mas ELE, de fato, havia ameaçado, isso podia acontecer! O que vai ser de mim se ele se quebrar? Não! Ela jurou ouvir um barulho de derrapagem contra a madeira. Levantou-se com taquicardia.

Ainda estava lá, jurava que um pouco mais carrancudo que o normal, mas intacto. Na madrugada pôs o sofá de fora, no corredor, prometendo entregá-lo a um vizinho no dia seguinte.

Um engarrafamento se formava na noite chuvosa, de onde saiu tanta gente num domingo? Ficou aliviada. Tudo isso que fizeram de manhã, não era isso que ela mais odiava? Dias e mais dias intermináveis de mesas de café, portas de escola, louças, poeira, brinquedos, implicâncias, ela juíza de discussões infantis, de novo e de novo? Me sinto sufocada Jefferson, sinto que abri mão de mim mesma, dos meus sonhos, quero trabalhar com aquilo em que me formei, quero subir na vida, por que só tu tem direito a isso? Por que eu tenho que viver na tua sombra? Não suporto cozinhar, nem o começo das tardes, as louças do almoço, o calor, é tudo tão abafado, tenho vontade de morrer! E ela arranjou um emprego, e se sentiu melhor por um tempo, mas ainda era muito pouco, seis horas diárias num escritório não compensavam grande coisa, os fins de semana todos sem graça, um enorme pedaço de seus trinta anos gastos com chatice: material escolar, sapatos novos para o semestre, aulas de inglês, natação, balé, reunião de pais, termômetros sob o braço, médicos disso e daquilo. Sentia-se estagnada no tempo. Não combinava com aquela vida, achou que servia para aquilo, mas não, enganou-se, certa vez chorou ao lembrar de um mês inteiro que passara nos Estados Unidos com os mais chegados da turma na faculdade, seguindo a turnê de uma banda. A Felicidade era o passado? Só o passado? Foi bem nessa época que falou aquilo para Vilma, estava meio bêbada por conta da garrafa de vinho que vinha esvaziando durante a tarde, e a menina apareceu no quarto para mostrar-lhe como seria a apresentação de balé na semana seguinte, entusiasmada com os ensaios. Os movimentos dela era tão lentos, tão descoordenados, os saltos nem eram saltos, ela nem despregava do chão; Vera não sabia que era possível sentir aquilo por um fruto do próprio ventre, mas desprezou a menina, desprezou, gargalhou, Vilma isso tá uma merda, tu parece uma mongoloide. Ela já estava de caso com Ewandro nessa época? Parece que sim, no mínimo alguns flertes. Talvez por isso e pelo vinho tenha sido tão fácil assumir aquela postura convicta, respaldada, quando o marido veio confrontá-la. Eu não te amo mais Jefferson, e nem sei direito se amo meus filhos, preciso de um tempo disso…disso tudo, se não acho que vou ficar louca! Desculpa, eu sei que não era isso que tu esperava de mim, mas tenho que ser verdadeira, é o que eu sinto, é quem eu sou, ou melhor quem não estou sendo. E de fato, ela fugiu deles, muito ocupada em recuperar o tempo perdido para sequer reavaliar aquela noite.

Mas não estava muito ocupada por si só, seguia também os conselhos DELE a esse respeito. Aconteceu na primeira semana depois que saiu de casa, o encontrou lá no apartamento. Ela retornara do trabalho, e depois de um bom banho, pusera o pijama, então sentiu o coração bater muito forte, como fosse sair; apoiou-se na parede para não cair de tontura. Acalmou-se. Ao passar para a sala, lá estava, não se surpreendeu nenhum pouco; sentou-se em frente, o rosto erguido. Felicidade em ouro, sobre o pescoço fino, uma cabeça cilíndrica que culminava numa boca enorme, profunda, sempre aberta. A fala era gentil, e a escuridão redonda de onde ressoava a envolvia de uma atmosfera de antiguidade, sabedoria. “Tu não precisas pensar agora, me ouve; precisas de mudança, aplacar essa dor. Considera a ti mesma novamente, respira. Depois de tanto tempo escondendo-te às sombras dos outros, eis o reino de tua vontade! Que tu queres, querida?” Ela se sentiu tão acolhida, compreendida. Mudou o cabelo, transou com o Ewandro, lá, aos quatro pés DELE, conseguiu um novo emprego, dessa vez com o que gostava, atendendo mulheres em vulnerabilidade socioeconômica, viajou com as amigas, dentro e fora do território nacional. “Menina, aqui está a verdade, num mundo hipócrita: aquele que é feliz deve possuir plenamente tudo que deseja, deve ser semelhante a pessoa que se encheu — não tem fome, nem sede.” Entre uma e outra jornada de prazer, descansava, hesitava e o inquiria se aquilo era certo. Culpa alguma jamais resistiu diante DELE, a refutava de mil e uma maneiras diferentes, com tanto critério. Quantos direitos ela tinha! Muitos, muitos mais do que a doutrinaram a acreditar. Necessitava tanto DELE, quase entra em desespero quando ele passou uma semana inteira incomunicável, bem no período em que ela teve uma aguda crise de dor que culminou na retirada da vesícula.

No supermercado, ela se dirige ao açougue; encara por tempo considerável o freezer.

Veio uma primeira demanda, depois que ela voltou de viagem, “quero o quarto”. Ela esvaziou com alegria os entulhos; mas ELE continuou demandando, e todos os móveis que os pais deram para ajudá-la com a mudança também foram retirados dali, à custa da perda de espaço nos outros cômodos; só ELE ficou. “É inaceitável que eu permaneça no chão!” Então ela pediu para a mãe o belo altar de mogno da família, cobriu com um pano branco e cercou de velas. A janela do quarto foi enterrada, mas ELE queria que a porta permanecesse sempre aberta. Lembrava bem: na noite de inauguração do altar, depois que ELE listou o que ainda faltava, ela abriu o jogo sobre uma sensação de tédio que a vinha acompanhando ultimamente, muito semelhante a que sentira antes, com Jefferson. A ausência de quaisquer traços faciais para além da bocarra sempre aberta, fora o fato de ser feito de mármore inflexível — ela notava isso com clareza hoje em dia, o ouro que vira anteriormente, era mármore pintado -, tornava impossível sua imaginação, mas podia jurar que ficou mais carrancudo depois da confissão. Ela esperou a resposta, hesitando o olhar do chão para ELE, algo inteligente, reconfortante, que a faria perceber quão tola estava sendo. Silencio. Só voltou a falar no outro dia, de um jeito diferente, mais áspero, ordenando que ela reorganizasse as velas, mudasse a cor do pano, e que fizesse urgente uma cirurgia no nariz, era torto, excessivamente grande. As coisas teriam começado a mudar dentro dela nessa época? Mostrou o apartamento e ELE para mãe, e depois para uma amiga, esperando opiniões sem viés; a primeira, respondeu que apenas Vera podia escolher o que queria para si, a segunda, elogiou a beleza do conjunto. Teria sido depois disso a primeira confusão? Para ensiná-la a confiar NELE, proibiu-a de falar da vida pessoal para outras pessoas por tempo indeterminado, porém era permitido mentir. Ela se sentia tão só. Nesse período começou a ter saudade das crianças, de Vilma principalmente. Vilma. Aquilo que ela fez à tarde teria sido de propósito, de vingança? A relação com ELE nunca mais foi a mesma. Mas nada como essa crise para nos reaproximar. Na noite anterior, querendo preparar terreno para o dia seguinte, pediu permissão para varrer e espanar o quarto, e ELE, depois de muito tempo, estando ela já recolhida, concedeu, com a condição de que fizesse isso nua. Ela até riu enquanto ELE falava porcaria, fazendo comentários indecentes sobre seus seios, e todo o resto.

ELE vai me ajudar…vai saber o que fazer!

A chuva aumentou. Vera sente dor no peito, as memórias daquele domingo não param de voltar e voltar. Mas ela já não chora. Deixa o carro do outro lado da rua, embaixo de uma árvore, a copa retém um pouco da chuva, não o suficiente. Desce com a sacolas e ergue os olhos ao apartamento no quarto andar. Mantém os olhos erguidos, esperando. Atravessa a rua. Já dentro, retira toda a roupa encharcada, e permanece exposta, treme. Apossa-se da cachaça, do tabaco, das linguiças, e da grelha elétrica, mal consegue segurar tudo de uma vez. Reacende as velas apagadas. O ambiente se enche das ofertas. Nem uma palavra até agora! Ergue as mãos e segura o mármore gelado. Por favor, uma coisa aconteceu…por favor…A carranca, apesar da boca bem aberta, mantém-se silente.

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