Aquele semblante caído

Ericeira de São Luís
14 min readJun 2, 2024

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PARTE I

Homem respeitável tornara-se Domingos. Aos quarenta e nove anos de idade, trabalhava de gerente numa grande loja de acabamentos para o lar, morava em considerável luxo num bairro nobre no interior de São Paulo, tinha dois carros populares, esposa e três filhos; de férias, por duas vezes, visitara o exterior; os vizinhos convidavam-no para festas de aniversário e nem em relação a cobranças o nome estava sujo, o crédito oferecido no cartão sempre passava dos mil e quinhentos reais.

Não se sabe quando a crise começou. A esposa já algum tempo frequentava a igreja evangélica do bairro, a qual ele comparecera única vez por insistência dela. Não gostou, o pastor falava alto demais, e, sinceramente, sentiu-se sufocado ali. Duas semanas atrás, sonhara um sonho ruim, acordara na madrugada e pusera-se a pensar. Lembrou da mãe já falecida há muito tempo. No dia seguinte, um domingo, causou admiração ao pedir para acompanhar a mulher e os filhos ao culto. Lá, após sermão do pastor barulhento em alguns versículos do capítulo três do Evangelho de Lucas, no momento do apelo ao público, Domingos não pode conter-se, não queria ser palha, e sim trigo. Desejou reencontrar a mãe, e lhe impeliu sentimento momentâneo de intensa infelicidade.

Passada a ebulição, segunda-feira e no restante da semana, nada mudou muito, exceto que a esposa brincava chamando-lhe “marido-irmão, marido-irmão”. Como sempre, criticou a negligência do governador com o acúmulo de lixo na grande São Paulo, xingou motoristas lentos no trânsito, levou os filhos para a escola, trabalhou, contou piadas indecentes para os colegas sobre a bela atendente do Rh, apreciou os bolinhos de arroz da mulher, vibrou com os gols do Palmeiras, e à noite, na cama, a consciência lhe punha para dormir tranquilo, como pai provedor e fiel esposo. Chegou mesmo a envergonhar-se de sua atitude na igreja, por que agi daquele jeito? Conveniente dor de barriga impediu-lhe de retornar no domingo seguinte, e assim a família toda também ficou em casa naquela noite na qual partilharam pizza.

Dois dias atrás, nova insônia acompanhada de melancolia conduziu-lhe à Bíblia, aquele capítulo esquecido de Lucas. Três! Rapidamente o sono veio. Sonhou.

São Pedro Arremedo do Rio Bandeira. A apertada casa da infância com tijolos expostos, naquele interior de fim de mundo; as ruas de terra onde brincava, nas quais dividiam espaço gente e muitos vira-latas; a espessa mata ao redor da comunidade e o rio atrás dela, chamavam-no Rio Bandeira. Despertou sentindo-se saudoso, emotivo, ainda era madrugada; foi para a sala e pôs-se a ler uma revista, iniciando o mesmo parágrafo três vezes.

Agradava-se das lembranças que se sucediam claras e relacionadas, um antigo e funcional carretel de cinema. Há quanto tempo nada disso cruzava minha mente? Entorpecido, cogitou a possibilidade de ser invencionice, pelo tanto que eram remotas as lembranças. Recordou das peladas na rua, dos ensopados de preá do tio Mário, da fogueira para torrar castanhas de caju e uma roda acolhedora de rostos esquecidos, da escola decrépita Resplendor, de seu Tobias, dono de cinquenta e sete cabeças de gado. Então lembrou de Carlitos…imediatamente, do crânio rachado de um vira-lata; dum outro que, tendo sido perfurado no pescoço por uma faca de serra enquanto dormia, grunhiu espantado, e ainda cambaleou por alguns metros sanguinolentos antes de cair ofegante e morrer; da felicidade dele e do melhor amigo com aquelas mortes insignificantes e divertidas, e do cuidado em manter a brincadeira secreta segura entre os dois.

Domingos perturbou-se. A nítida imagem dos olhos daqueles animais, dos focinhos, da pele amarelada, do porte raquítico, o som do gemido fino, causavam-lhe asco agora; pena? Era um homem respeitável!

Largou a revista, cerrou os olhos com força e depois os esfregou. Passado. Como poderia ter sido diferente? Ignorante! Cercado de gente ignorante! Além do mais era apenas criança, qual criança nunca fez dessas besteiras?

“O sub-secretário do ministro dos transportes, Moisés Coelho, alterou para próxima terça-feira (13) o prazo de inscrição…”

A lembrança beliscou-lhe a nadega no sofá, pôs-se de pé num susto. Olhos de horror vidrados no piso de cerâmica. Sufocava-o o amplo espaço da sala.

Qual era o nome daquele preto? Antonho? Trouxe o rosto remoto à consciência. Meninão agigantado, gordo, assemelhava-se a um bezerro. Insolente, era violento jogando bola, machucava e zombava dos meninos mais novos e menores, basicamente todos. Sem qualquer pudor, e sem motivo, tecia comentários inconvenientes e imorais sobre a mãe e o restante da família de Domingos, além disso repetia para quem quisesse ouvir que ele Carlitos eram viados e por isso passavam tanto tempo juntos. Ele trabalhava na fazenda do seu Tobias, era filho da cozinheira, dona Rosa. Quantos anos eu tinha nessa época? Treze?

Um dia, de manhãzinha cedo, Domingos conversava e atirava mangas no rio com sua sombra, Carlitos, para ouvirem o barulho destacado na calmaria; este tinha o costume de madrugar à casa dele, e então prologavam-se na companhia um do outro até o pôr do sol. O Antonho apareceu ali de repente, vindo não sei de onde, tão cedo. Soltou um primeiro comentário provocante, enquanto esticava a mão para umas mangas; propositalmente ignorado pelos amigos, insistiu, redobrando a carga. O que aquela peste viera fazer ali? Domingos franziu o cenho, a boca descaiu num sorriso contrário, a cabeça latejava. Não podia mais levar aquilo na brincadeira, nem se calar; enfrentou-o, cala a boca, cala a boca, vai procurar tua turma misera! Antonho, surpreso, resolveu retificar seu domínio, partiu para cima, e caiu por sobre o outro no chão, reteve com facilidade às mãos dele; de repente mugiu e afrouxou a força. Uma faca de serra nas costelas dele, bem embaixo do braço; ao fundo, Carlitos de rosto assustado. Revoltado sob aquele peso, Domingos também sacou sua faca de torturar vira-latas, a qual mantinha no flanco, entre o calção desbotado e a pele, perfurou e perfurou as gorduras daquela massa incrédula. O meninão ergueu-se e tentou correr para o rumo de onde veio, ziguezagueava, ambas as mãos se esforçando por fazer sumir o sangue; a faca de Carlitos resistia no mesmo lugar, fincada. Desabou no chão terroso. Domingos ensaiou pedir ajuda, mas algo o impediu. O que? Já não conseguia lembrar, tantos anos depois permanecia apenas a vaga sensação de raiva ou honra. Após alguns minutos de perplexidade, achegaram-se à pilha negra de sangue: estava lívido, os grandes olhos leitosos pediam socorro…ou será que ele já tinha…?

Quando decidiram o acordo, permaneceu de vigia e Carlitos lidou com o corpo, ajudado pelo terreno inclinado e depois pela água. Puseram-no um pouco além da margem, e observaram a correnteza afastá-lo da vista. Cobriram com terra o sangue no chão. E as facas?…

Com exceção daquele pedaço, o pilão de três décadas havia pulverizado o restante das lembranças. Como ele e Carlitos viveram após o incidente, como ocultaram o novo e pesado segredo, como a comunidade e dona Rosa reagiram, e quando a escuridão da mente dele engolfou o fato, por mais que forçasse os miolos, não recordava. A última memória confiável que tinha de Carlitos consistia num jogo de futebol que assistiram juntos, quando o pai de Domingos comprara a primeira TV; estavam mais velhos, definitivamente, as vozes mais grossas. Depois o amigo mudou para a capital e nunca mais se viram.

Deus! A antiguidade daquilo o deixava ainda mais perplexo. Na chegada a São Paulo, aos vinte e três, já tinha esquecido da existência de Antonho. Pensara nele em algum momento no passar dos anos? Não…como?

Por que diabos tô pensando nisso agora? Sentia a garganta e o peito quentes. No relógio, 03:35, ainda. Com força, sacudiu a cabeça e tentou retomar a leitura da revista.

Isso não pode me incomodar agora, já passou tempo demais, ninguém nem lembra disso. Eu era criança. Carlitos também. Aquele Antonho provocava demais. Um momento de fúria duma cabeça infantil, idiota. Alguém se irritaria com ele em algum momento. Trouxa e babaca do jeito que era. Tenho meus filhos pra cuidar. Minha mulher. Tenho que fazer é bem agora pra eles, dependem de mim. Bem para outros. Preciso parar de pensar nisso. Não vou conseguir dormir. Amanhã tem expediente às oito. E dona Rosa?…

Distraiu-se com o trabalho, exceto pelo instante em que discutia sobre o Corinthians com o amigo, e, ao lembrar daquele rosto negro e largo, perdeu as forças e permitiu que o outro ganhasse o argumento. À tarde, chegou exausto, jogou-se na cama de roupa mesmo e dormiu pesadamente.

Alguém batia na porta, lá fora. Cada estalo do punho contra o portão de alumínio aterrorizava. Era o homem santo, o maior dos profetas, revelaria todas as suas maldades, primeiro para a família, depois para o restante do povo. Não abram, deixa bater, uma hora ele cansa e vai embora. Oh, meu Deus!

Quando a esposa o acordou, surpreendeu-se que já fosse hora de ir para o trabalho de novo. Desta vez, a ruminação se estabeleceu. Arrastou-se até o fim do expediente. A impressão era a de que os pensamentos possuíam massa e sofriam ação da gravidade.

Agora, enquanto assistia à televisão de quarenta e duas polegadas, a família toda na sala, com o notebook sobre o colo, repassava na cabeça os incômodos últimos dias e, meio que no automático, pesquisava sobre a qualidade das prisões em São Paulo; sobre o estado em que se dava a detenção de um crime cometido em outro; e sobre prescrição. Só estou pesquisando!

No domingo, decidiu retornar à igreja, quero trocar esses pensamentos podres e coagulantes por algo novo. Quero Deus na minha vida, estou desse jeito porque ignoro a religião. Ouviu que Jesus Cristo morreu para pagar a pena devida aos nossos pecados, do que mais preciso para deixar tudo isso pra lá? Deus, o próprio Deus, disse que está tudo bem…

No entanto, o restante da semana foi lenta e infernal, nada lhe tranquilizou, nem a Bíblia, nem a família, nem o trabalho. Tudo era acompanhado pela sujeira lá no fundo da cabeça. Preciso decidir deixar essas coisas no passado, o presente é o presente. Decidiu. Não vou mais pensar nisso! Chega!

Melhorou bastante nas semanas seguintes, barba feita, focado no agora, frequente à igreja, bem-sucedido na venda de quatro cozinhas, que comissão! Esse dinheiro vem a calhar. Planejou: nas férias, Júlio, Ana e Lucas conhecerão a Inglaterra, é um lugar que sempre quis voltar com a Lídia.

Certo dia, quase um mês e meio depois da madrugada na qual lembrara de Antonho, levaram as crianças para passear no parque. Sentou-se com a esposa na grama sobre uma canga; ao longe, o sol de fim de tarde refletia nas bicicletas dos filhos. Não filha, não mexe com essas formiguinhas, vão te picar e vai doer. Alguém lançou um frisbee, o cão saltitou para buscá-lo, que raça é essa? Sacudia o rabinho e o corpo ao mesmo tempo, feliz diante do dono. Infelicidade infinita regelou-lhe o sangue, de repente, transbordou — soluçava inconsolável.

Depois, desconversou sobre o choro repentino, olhei uma senhora no parque parecida com minha mãe. Vivia cansado, distraído, a cabeça zonza, um nó na garganta. O tempo cura tudo! O tempo cura tudo!

Preenchia um relatório de vendas no escritório quando a esposa lhe telefonou para contar que Lucas quebrara o braço na escola. Ali mesmo, enquanto, nervoso, procurava as chaves do carro, Domingos se decidiu, vou para São Pedro. Ele precisava resolver o problema na raiz, de uma vez por todas, onde tudo havia começado.

PARTE II

Para a família, viajaria a negócios ao nordeste; para os empregadores, viajaria com o intuito de resolver graves e urgentes problemas familiares.

Ao chegar na capital maranhense, tomou van até São Pedro, trezentos e quarenta quilômetros. Quase nada reconheceu do cenário da infância, o que borrou qualquer impacto emocional. A vila crescera transformando-se em algo maior através da mata, civilizou-se com asfalto, posto de saúde, praça comunitária, um mediano mercado, e até uma prefeitura. Não conseguiu identificar a rua, muito menos a casa onde morara. Apesar disso, o perene Bandeira ainda corria ao norte da cidade.

O rio estreitara-se, cimentaram de forma precária a maior parte das antigas margens de areia batida. Caso o… crime tivesse sido cometido hoje, não conseguiriam segredá-lo. Observava algumas crianças brincando sob olhares distraídos de mães lavando roupa. A mente levantou voo e pousou num pensamento adventício, atroz, e se no fim eu for salvo do inferno e o menino que matei acabar lá? Logo buscou movimentar-se, a boca amargou.

A delegacia de cerâmica branca suja de lama ocupava a esquina, após uma loja de conveniência. Nos planos incertos de Domingos, relataria todo o acontecido ali, e os policiais provavelmente o tomariam por louco. Dispôs-se, ainda no voo, instar pela pena devida e rejeitar qualquer possibilidade de prescrição, mas o que sabia desses assuntos partira de páginas dúbias na internet. Seria possível requerer punição por crime prescrito? Que provas apresentaria para aceitarem seu testemunho?

Convenientemente, enquanto repassava o que diria, apoiado sobre o braço da mala, mudou de motivo para adentrar à pequena delegacia. Antes de confessar, poderia vasculhar acerca do acontecera com o pessoal da época: Dona Rosa, Seu Tobias eram provavelmente já falecidos, mas teriam deixado parentes na cidade? Quem sabe soubessem até de Carlitos, seria bom dar-lhe um aviso prévio, visto que não pretendia omitir nenhum detalhe do que ocorrera.

Hahaha! Carlitos, o prefeito?!! Ergueu os olhos para o céu e um arrepio percorreu-lhe o corpo. Nunca teve tanta certeza da irônica existência de Deus quanto naquele momento. Encheu-se da indesejável adequada avassaladora convicção de suas ações.

A pequena e desbotada prefeitura ladeava uma Assembleia na praça. A secretária avisou que o Sr. Carlos Melo retornaria apenas às dezesseis horas e que sua agenda do dia estava cheia. Com certeza ele não se importará de conversar alguns minutos com um velho amigo. Resolveu esperar ali, na antessala praticamente vazia, com exceção da mesa e cadeira da recepcionista, um filtro com água, e dois banquinhos de plástico. Forte cheiro de tinta empesteava o ar.

Não fosse pelas mechas douradas em meio a profusão negra dos cabelos, aspecto marcante do amigo de infância, não identificaria Carlitos no homem que chegou à prefeitura pouco após as dezesseis. Atarracado, largo, ofegante, de passos curtos e rápidos, trajando calça folgada e uma camisa havaiana desabotoada até a metade do peito, expondo tórax peludo. A combinação da aparência com as roupas, deixava assim a dúvida se estava se exercitando ou ofegava pelo excesso de peso em meio ao calor nordestino. Relanceou o visitante, mas definitivamente não o reconheceu, e adentrou, calado, o escritório, seguido pela secretária. No olhar de ambos se insinuava desconforto com o indivíduo aleatório no salão. A visão do amigo encheu Domingos daquele estado de alma comum quando se tem contato com objetos históricos muito remotos.

Inexplicavelmente menor que a recepção, a sala de Carlitos consistia num cubículo de aproximadamente quinze metros quadrados: havia uma mesa de plástico rústica, colocada no canto, sobre a qual apoiava-se um computador antiquado e algumas caixas; adjacente a ela, um frigobar encardido; diversos papéis brancos e alguns livros espalhavam-se pelo chão; um ventilador de teto labutava, já perto da aposentadoria; no lado oposto da sala, uma janela de vidro escurecido que tomava quase toda a parede permitia que se visse a praça.

O prefeito assentava-se relaxado e de pernas abertas atrás da mesa, enquanto bebia água direto da garrafa, espremendo a embalagem.

– Senhor…. Domingos? Em que posso ajudá-lo?

– Carlitos? Não sei se você vai lembrar de mim. Domingos…. Domingos Ribeiro…

Ele franziu o cenho por alguns segundos e, de repente, saltou da cadeira num brado exagerado, vindo para perto do outro.

– Dumingo? Filho de seu Augusto? … Meu amigo…hehe…. a quanto tempo! — ao perceber que Domingos não reagiu com o mesmo entusiasmo, arrefeceu. Encaravam-se –… a que devo o prazer dessa visita? Tu voltou a morar aqui? Ou tá só de passeio? …. e teu pai ainda tá vivo?

– Ah…não, não. Seu Augusto morreu seis anos atrás…e dona Maria há oito.

– Ih, rapaz…fico triste…, mas morreram de que?

– Morte morrida mesmo…velhice…. mas me diz…. e você, Carlitos? Os pais ainda vivem? Tem família? — arriscou Domingos, desviando o olhar.

– Carlitos! Tem tempo que ninguém me chama assim…. Papai morreu faz tempo já….se não me engano, esse ano vão fazer quinze anos…tenho um filho de vinte. Esse trabalho aqui… de prefeito… me toma muito tempo… — exceto por leve sorrido crispado, falava agora sem se mexer, de olhar fixo, mal mudava a expressão, só os lábios subiam e desciam, a voz aguda e monotônica, como se discursasse para uma câmera, em total contraste com o entusiasmo anterior. Será que ele se zangou?

– Prefeito…não imaginei que você fosse ser político…ainda mais daqui? Por que você voltou pra cá? — oscilava a vista do chão pro rosto de Carlitos. Observou que possuía um dente de ouro.

– Pois é, rapaz…voltei com papai um tempo atrás…quando ele ainda era vivo, vim morar aqui com minha esposa e meu filho recém-nascido…. Na época ele veio chefiar uma obra aqui… um açude…, mas essa história de prefeito não surgiu há muito tempo não…até eu me surpreendi. Mas me diz Domingos, o que tu faz aqui?

Domingos manteve silêncio por alguns segundos. Caminhou de cabeça baixa até a janela. Sentia náusea. Atacou-lhe uma dor de barriga: o que é que eu tô fazendo aqui? O quanto antes me livrar disso, melhor. A voz quase não lhe obedece e a frase seguinte saiu baixinha.

– Carlitos… lembra …do Antonho?

Repentinamente, o sorrisinho do outro se desfez, cedendo lugar a um aspecto sisudo. Retornou para trás da mesa, apoiando-se com as mãos antes de responder.

-De quem?… Que Antonho? — indagou, franzindo o cenho.

-Você sabe…aquele…menino, gordão, negro, filho da dona…Rosa…trabalhava com seu Tobias…na época que a gente era criança…- emendou, perdendo o fôlego — …lembra…daquele dia…daquela briga com ele? No rio…?

Um eterno minuto passou. Domingos com olhar hesitante, Carlitos fulminando-o.

– Domingos…que conversa é essa? O que tu ta fazendo aqui?

– Eu…eu me lembrei disso outro dia…o que a… gente fez …

– O que a gente fez, Domingos?! — rebateu de chofre. O rosto dele deformava-se aos poucos, ficando vermelho, enrugado, a boca virara uma espécie de caroço arroxeado.

Domingo assustou-se com a mudança de tom. Enraiveceu-se com o próprio susto; certa coragem alheia apoderou-se dele. Tenho que falar o que tenho que falar.

– Carlitos…Carlitos…nós esfaqueamos aquele rapaz na beirada do rio…eu tinha por volta dos treze e você também, tanto, tanto tempo atrás. Aqui nessa cidade…vim aqui pra isso…sem saber que você era prefeito. Jogamos o corpo dele no Rio e escondemos tudo. Não lembro bem o que aconteceu depois daquilo…nós desaparecemos da vida um do outro. Mas quero consertar isso agora, eu não posso mais continuar impune desse crime… — atropelava-se, mal parando para respirar.

Fremiu o rosto de Carlitos. Saiu detrás da mesa tão rápido quanto no momento da recepção animada.

-Ei…ei….ei… fala baixo! fala baixo! Do que diabos tu ta falando? Que crime? Nós cometemos crime? Eu não cometi crime nenhum, rapaz…tu tá maluco? — Carlitos gesticulava com velocidade, a cara um tomate; prosseguiu num sussurro irritadiço, o dedo em riste — não vem me meter nas tuas confusões não!

– Carlos, eu não tô querendo…meter você nas minhas confusões… vim aqui para isso, para dar um aviso prévio, eu nem sabia que você era prefeito, muito menos prefeito daqui…Eu me lembro bem daquilo… e eu… não consigo mais manter isso pra mim… preciso contar…preciso contar…. Mas não estou mandando você fazer o mesmo…não sei o que vai acontecer…, mas vou contar… — Domingos fez menção de sair, mas Carlos gesticulou para que se acalmasse.

-Ei, ei, ei, o que é isso? Contar o que, rapaz? Contar pra quem? … Domingos, calma ai, calma ai…espera um pouquinho. Deixa eu dar uma respirada.

Carlos tornou de costas e parou no meio da sala, passando ambas as mãos no rosto. Voltou para detrás da mesa, depois caminhou até o frigobar e o abriu, sem pegar nada; dali, dirigiu-se à porta. O ventilador continuava sua jornada barulhenta, indiferente.

– Fernanda, meu bem, vai lá no seu Vicente e compra umas garrafinhas de água… — pediu com tanta naturalidade e doçura que nem parecia ter se exaltado poucos segundos atrás — …Domingos, tu sabe que essa é uma acusação muito séria…eu sou prefeito dessa cidade — adotou novamente aquele tom de horário eleitoral, falando, mão esquerda apoiada na porta, sem se virar.

– Eu sei bem, Carlos…por isso vim procurar você antes…Peço desculpa…minha intenção não é perturbar….só queria avisar…antes…acerca do que eu ia fazer…- virou para observar a praça.

– Tu não vai fazer nada, Domingos — partiu de chofre para cima dele, com uma peixeira vinda sabe-se lá da onde na mão direita; perfurou-o sete vezes nas costelas, empurrando-o contra a janela, não lhe permitindo nem tempo para entender a situação.

– Benza Deus essa Fernanda gostosa! Não fosse a ideia dela de colocar essa janela escura…

Esse foi o quarto homicídio de Carlos Melo. Com o financiamento de alguns faz-tudo de confiança da cidade, lançou o corpo no Bandeira, num trecho de rio setenta metros abaixo de onde sumira com seu primeiro, tantos, tantos anos antes.

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